2 de dezembro de 2011

Epílogo:

Encerro o Livro de Horas e Barcarolas. Começo agora o Bruto Bolero, aqui: http://brutobolero.wordpress.com/

3 de abril de 2011

A banda

O cheiro parecia vir de jasmins que, derretidos no calor da tarde, escorriam em poças pela praça. Três moleques revezavam um cigarro. Uma mãe observava o filho dando voltas na diminuta bicicleta com rodinha. Um cão com o hábito de deitar no batente das janelas, à moda dos gatos, fazia o mesmo. Largada, uma melancia aberta às moscas exibia um vermelho de carne crua. Um velho sentado em seu quintal não comia fruta alguma. Um homem reduzia a velocidade para digitar ao celular enquanto dirigia. Duas senhoras inquietas reportavam um roubo. Três meninas arrumavam o cabelo ansiosas frente a uma igreja vazia. Duas rolinhas escondiam-se apressadas. Nenhum gato saltou de um muro, nenhum gato saltou de lugar algum. Uma mulher manobrava o carro na garagem enquanto um casal se despedia sem querer se despedir. Um homem sacava dinheiro no banco e o dividia entre o bolso e a carteira. O supermercado da esquina provava ser o maior fornecedor de sacos de lixo da vizinhança. O esgoto era pouco e corria pela mesma sarjeta ainda que pudesse virar a esquina. O fato é que naquela tarde os que doíam não se esqueceram da dor, os que não doíam dela não se lembraram, não houve banda e, de um ponto-final a outro, cheguei a acreditar que não se falava de amor enquanto o domingo seguia pouco e pela mesma sarjeta.

God bless the child

Tamanha era a gritaria daquelas três cabeças em silêncio que não se consentiu a ninguém o sono de despedida. A mãe media a insuficiência do zelo, o pai enumerava mais um fracasso na tentativa de existir para um passado menino. E ele, o filho, se sentia grato, comovidamente grato, pelo cuidado e presença de ambos. Lembrou-se, então, ele, o filho, do cachorro de orelhas em pé sem saber se o que ouvia era o pio de um pardal ao longe ou o barulho que em meu corpo futuras saudades já faziam. Todos, colhendo derrotas e a partir delas, à sua maneira, desejavam-se felicidade. E era este, não outro, o nome do adeus afinal encontrado.

15 de setembro de 2010

Chega de saudade

Minto se digo doer a saudade, que se tornou, desconfio, coisa fina e contínua, como zumbido perceptível aos ouvidos apenas em grande silêncio. Aí nota-se que o barulho não vem de fora; está ali em nós, dentro de nós, o tempo todo em nós. Talvez saudade seja palavra que repito impreciso quando digo de tua mão pousada em minha coxa enquanto almoçamos (e não sabem mãos e coxas da delicadeza que encenam quase mecanicamente). Talvez saudade seja palavra que impreciso repito quando digo de tua boca semi-aberta amassada contra o travesseiro que assisto antes de te despertar (e não sabem bocas e travesseiros dos indícios que ali encontro de pureza e verdade). Digo do muito suor de nossas manhãs: com ele alimento a elipse da lua, a elipse que agora pode girar na mais tediosa prosa dos dias. Possivelmente não é saudade, possivelmente não é saudade as sutis modulações do apito que, incessante, pede para não fazermos senão repetirmo-nos: boa noite amor boa noite amor.

18 de agosto de 2010

Esotérico

Tenho a impressão que nunca compreendi cada vinco do tempo compartilhado, cada veia saliente das pernas. Observar com alguma verdade um corpo e ter calma. Estar calmo. E seguro. Poucos foram aqueles a quem entreguei meu sono - o de quem descansa. Penso que por muito poucos velei a procura dele. E talvez nenhum tenha me dado, enquanto procurei. Tempo e permanência, pedi. Certamente um dia não mais admitirei chamar amor a estas músicas que terminam no volume descendente, pouco a pouco, até o silêncio. Espero-o pelas madrugadas. Penso que invariavelmente esperarei. Porque assim aprendi com minha mãe. Porque assim amam as mulheres da casa. E me habituei a ter sempre um verso pronto, pendurado à maçaneta, para que me acordasse quando girasse desajeitada já no avançado da noite. Ainda sou o menino que antes dizia eu-te-amo com pouco cuidado e muita sinceridade; hoje, talvez, com a diferença do inverso. Mas ainda ele, talvez destino dos que escolhem errar.

9 de julho de 2010

At long last love

A arte de viver em sismografias de casa sólida. Não eram sirenes. Suponho que havia luz quando fechei a janela do quarto. Não que o inverno estivesse rigoroso: sempre pode esfriar durante a madrugada. Acordo, não saio da cama e da Anatólia até meu travesseiro somente gravei o dissonante traço de cenhos. A constatação não escapa às agulhas: havemos de dormir com algum déficit de zinco ou potássio diariamente. Mas hoje se me escapar uma rima por entre serpentes da noite, te juro, eu rasgo Saint Andreas como quem rasga estes versos.

11 de junho de 2010

Por toda minha vida

Achei amor por entre velhos cobertores estocados em longos verões. Amar como quem ganha certezas. Amar como quem as perde. Amar como quem almoça chiclete. Amar como quem coleciona defeitos. Amar como quem nunca violou botões de emergência e agora os procura por segurança. Amar como quem volta a rezar.  Amar como quem percebe o deslize do mágico e está satisfeito com o circo. Amar como quem assiste galhos de árvore crescer numa tarde. Amar como quem desconfia que três ou quatro pelos nascidos no braço são sementes do outro vaso. Amar como quem reconhece companhia em dedos tingidos na groselha das pipocas. Amar como quem, no vapor desta água, bebe todos os chás futuros. Amar como quem reescreve um povo para justificar o estrangeiro. Amar como quem acorda e decide voltar para cama. Amar como quem tem cama. Amar como quem não dorme. Amar como quem esquece a vontade de amar. Amar como quem ignora a própria mentira. Amar, sim, como quem volta a rezar. Amar como se fosse possível. Amar como quem diz por toda vida e isto quer dizer.

30 de março de 2010

Falando de amor

Quando imaginei que o proveito último de um amor era um verso, enrubesceu o beijo num semáforo perdido. A senhora que laborava em longas teias de segunda realidade desfiou os olhos para o sol. The curse is come upon me, she cried. Agora, serão teus apenas e todos os meus rascunhos. E pela fenda de um espelho partido, cruzamos antes que os carros tornassem a andar. Atravessemos. E do silêncio apressado dos que procuram a outra margem, eu tiro um verso de metro raro.

26 de março de 2010

Estate

E olhei ao verde relógio por entre os cílios que se abriam, pois que meu corpo, sem que eu desse por isto, atendia ao dele, desperto: duas silhuetas no teatro se confundiam no traçado que o catálogo chinês evitou nomear. E confidenciei: sei que está acordado - e à formula deu-se a contra-senha de um beijo. Toma-me a rosa-dos-ventos. Descobre as quatro setas que apontam pro este, pra arte dos nascentes, pra arte de vencer madrugadas. Era ele, este, a quem eu oferecia a verdade das manhãs de estate no silencioso diálogo de nosso conforto.

21 de março de 2010

There's a small hotel

Escondi as mãos e o signo de rascunhos. Examinei nas digitais da memória mínimos espaços do teu corpo que preencho com flores e o sumo das frutas. Das madrugadas cresce o tangerina de portas damasco; do pó cansado das ruas, o jasmineiro que não se dá a ver. Encontrar a delicadeza dos pulsos era hábito entre os noivos de tribos inventadas: meu polegar e indicador fechados em círculo na ponta de teu dedo médio. Provisório coração. Batida fina - é vivo. Com a rendição do gesto: "olha como tenho as palmas todas riscadas", ofereci o solo de duas luas para tua livre cartografia: pátrias e estados menores, estandartes menores, cidades e hotéis menores, quartos, leitos, homens menores - o pulso.

28 de fevereiro de 2010

Préludes, La cathédrale engloutie

Cobertores e lençóis tem o cheiro puro sangue das minhas noites. Íris da praia de um sorriso, abertos dentes de madrugada e seco pelo ocaso, pelo acaso seco: ecos de catedral pré-fabricada, falsos profetas e hosanas lâminas. Numa esquina daquele banho, a estranha arquitetura de poeira e três ou quatro fios do meu cabelo. A percussão das gotas era também disritmia de um monocórdio coração.

11 de fevereiro de 2010

Sábado em Copacabana

Na noite entre ondas de rapazes branco e preto. Perdido em infames jogos babélicos, bibliotecas imaginárias cujos cantos segredam jardins sob pretexto de saúde. Um desperado. Um plano de vingança sempre remoçado. São muitas mãos que exercitam meu corpo ao longe para que se garanta a saliva da linha. Vinde a mim. Desconfiam do sotaque. Sou daqui. O que não atinam é com a outra mentira, talvez por isso o estranhem. È strano, è strano. E antes de fechar a porta, arriscam: são violetas, camélias, margaridas? Não entendem o sorriso, mas suspeitam que seja adeus. Vão.

28 de janeiro de 2010

Folhetim II

Os homens tornam-se seu sintoma: a cicatriz o grito o corte de cabelo a porra. Alguns são nada, sequer data em calendário vencido. Acumulados anônimos em submerso movimento manam. Ocorrem-me do chão - como uma cárie, um poro obstruído. De nada vale espremer até verter sangue. Pensou, então, poder falar de outros pomares.

24 de janeiro de 2010

Folhetim

Meu colar tem muitas contas: olhos bocas homens mortos carnes cortes. Joie de cofre. Dança o deus na corte - Melchior trouxe lençóis; Baltazar, vinho; Gaspar, sorrisos. O menino adulto herdará o mundo com seus preços, leis e servirá muitos senhores, outros tantos reis.

17 de janeiro de 2010

Sem fantasia

Cessaram as lutas, meu homem. Levantar ataque, levantar defesa soa credo incômodo. Serão outras as lições do meu soldo. Quem canta em tempo de paz tem de clamar licença, tem de forjar justificativas, tem de sofrer o escárnio dos amputados na sangria. Quero que te atente, que te apresente, que inscreva em meu manto as tuas gestas. Entrega-me teu arco, flechas.  Corpo de batalha, terra de ninguém: talvez assim camuflemos despedida ou talvez perpetuemos guerra involuntariamente. Mantenha a posição, ao meu sinal...

13 de janeiro de 2010

Morro Dois Irmãos III

Então eu te disse: não quero mais, quero sempre. Respondeste: o que é mais que sempre? Coordenadas de nossa fantasia. Geografia estraniera. E digo Abissínia, Mianmar. Invento capitais de impérios e tropicais whisky mares. Invento um novo eixo, meridianos em palitos. O mundo, amor, começa aqui, nos litorais da minha retina, nas fronteiras, palmo a palmo, desta mesa, palmo a palmo, do que éramos nós. O dedo que procurou deus apontou a pedra e o nome que, por justo, confidenciamos hão as décadas de revisar.

11 de janeiro de 2010

Morro Dois Irmãos II

Se me entregas teu corpo, entrega-me algum silêncio, alguma vontade frouxa de não mais querer, algum cheiro de nada que carrego para cama e percebo no sonho que era do mar ou de ti no mar ou de qualquer variante que um sorriso palermo não há de resgatar pela manhã, entrega-me uma manhã, não uma qualquer, mas aquela que não sabe dos teus olhos de outono e ainda faz alvorada. Assim me despojo desta pele abrasada. Menos: desenho teogonias e faço de ti minha pétrea companhia, ancestral, no agora, no nosso tempo, no tempo em que o violeta e duas sombras no ocaso não exigem uma rapsódia.

7 de janeiro de 2010

Morro Dois Irmãos

Não te ocupe do corpo que arde. Não, amor. Não te ocupe dos meus dedos cortados. Não te ocupe do que é meu. Pois sentei-me: copo à esquerda e o mar na palma que escreve. E vi o que procuram meus olhos e sorri. Não quero menos e sorri. Do que espero e gosto e sorri. Nas curvas nos volumes n'água. Quase nua superfície, sombra maciça: titânicas evidências de outros arranjos de fogo e seus assentamentos. Não desejei aquele, mas toda a paisagem. Menos: era gente vulgar que dormia à volta ou os que não viram o meu sinal por detrás do vidro e do malte.

27 de dezembro de 2009

Trocando em Miúdos

Pensei ter chegado às 7:17. O relógio da cozinha marcava 7:12; o do quarto, 7:19 Pensei também que nos despedíamos às 21:45 e que eu cruzava tua porta, a última, dois minutos depois. Às 21:47, ainda nos amávamos? Mentira: amores, quando terminam em veraneio, terminam com uma hora de atraso. Foi isso, então.

7 de dezembro de 2009

Signore, ascolta

É, principesso: uma única ária e monótonos recitavos, muitos.

1 de dezembro de 2009

Homenagem ao Malandro

Este é bandidinho. Corre miúdo, girassol . Meio-fio, cruza o sinal. Estende a toalha, dobra o lençol. Saca os dados, não chacoalha. Não lança, canta o final. Sacana, sacaninha. Imita samba, não dança. Salta miúdo, dobra seis. Meia-noite, cruza o lençol. Chacoalha a sandália, não girassol. Esconde a toalha e o porte ilegal dum bemol.

9 de novembro de 2009

Angélica

Aos olhos chorosos e inúteis disse dali, pregado em martírio: acalma-te, mãe, que o peito ainda vive. Crente, ligou o rádio e pode cantarolar um samba-canção, cuja letra lhe escapava.

5 de novembro de 2009

Minhas madrugadas

O calor - demais - derretia os corpos sobre a cama. Os punhos cerrados não reteram a carne desfeita em lágrima. Um carro derrapava em roxa velocidade pela noite paulistana. O menino insone não viu. Mas que bobagem: era a lua nova tão grávida da última madrugada.

30 de outubro de 2009

Por causa de você

Síndrome de Penélope. Doméstico signo de trabalho. Volta: vê a ti no baralho viciado; primeiro noviciado da fortuna: lance de dados. Na mesa, na mesa da casa, está posto o banquete. Ceia posta. Fala. Tudo parece irremível, velho. E o vinho - esquecido aberto.

22 de outubro de 2009

Cotidiano

Do meu velho morto os dias em  tediosas sobrancelhas. Amor, o trilho? Dá-me velas épicas, o beijo das oliveiras. Boa noite, bom dia. O cabelo corto amanhã; o cotidiano não: contarei as novas ao trabalho da tesoura. Três moedas ou trinta palavras ou algo assim. Era noite em Singapura e o trem já partira da Luz.

11 de setembro de 2009

Construção

A casa deslocou-se três centímetros. Os que dentro dormiam sequer notaram. Despertos, seguiram o protocolo do dia. A história é outra. Começa: bom dia, tudo bem?; tudo. A resposta não se interessou pela tréplica. Três centímetros: quase nada.

7 de setembro de 2009

Retrato em branco e preto

Neste quarto sitiado, idos versos dum soneto, qual o homem?

15 de julho de 2009

As time goes by

I forgot we said no questions - era esta a fala, se bem me lembro. Hoje é dia, amanhã pode ser aniversário ou revéillon, amanhã ainda não é. Hoje é incômodo feito sarna, papel largado, ontem ainda não era. Espreitas o presente, conheces meu passo. Quisera confiar no sorriso envergonhado do anônimo naquele toque não atendido. Quisera crer que o restante não foram sobras - é todo doce que se consome aos bocados. Não sou o acento errado e controlas o texto. Leia com vagar, compassado.

11 de junho de 2009

Teresinha

Alguns passam julgando ser um atalho. Alguns passam pelo prazer da dificuldade aparente. Alguns, perdidos, simplesmente passam. Invariavelmente todos chegam a mim pela guarida. Senhores, repito, a guerra é injusta; a demanda, precipitação. Por acreditar, fiquei pelo caminho. Para esperar não os que vigorosos passam, mas o derrotado que há de voltar.

7 de maio de 2009

Where or When

Noite caída em corpos circulares, especulares cartografias. Seus olhos são verdes? Castanho claro, é a luz. Você parece aquele ator, esqueci o nome. (Ma mio misterio è chiuso in me.) Quisera corar em francês, ir para cama em italiano. Você é tão pequenininho. Nada de novo. Ruborizo pela liturgia. Eu queria dizer uma coisa, me lembra um verso. Vaidades: cala, cala, cala.

26 de abril de 2009

Futuros Amantes

Do chuveiro veio a matéria suspensa. Entre espumas e sabonetes, pelo apartamento. Lençóis alagados, alagadas almofadas. Não cessava, não cessava. Janela a dentro - deu no jornal: bom tempo na cidade; pancadas pelo interior. Entre sabonetes e espumas, pelo apartamento. Consumidos os armários, ralearam café e soneto: papel já pele que o toque desfaz / diluída tinta do azul ao púrpura/ jaz vaga qual às palavras apraz. Indeed, my lord, you made me believe so. Açúcares misturados aos ácaros afogados. Muita saúde era ressaca. Estranha infusão, estranho aquário. Um hausto. Guela a dentro - deu no jornal: acharam-na boiando, a donzela, num quadro que julgaram démodé, mas calaram em respeito ao luto.

14 de abril de 2009

Folha morta

Caixa esquerdo coração: Sinatra & Jobim, El amor en los tiempos del cólera, As sonatas para cello de Brahms: medíocres metonímias. Alô, não tem ninguém com esse nome. Esperei algum tempo para entregar o presente que acabou entregue ao quadrado papelão de memória. Herança secreta solteira. In pectore. Desculpa, foi engano.

13 de abril de 2009

A cereja e o vermouth

Parece bolero. Eu disse: veja algo com baixo teor de desilución. Completei sussurrando pro anônimo ao lado: é que sou fraco pra essas coisas - pois que havia me subido à cabeça.

10 de março de 2009

Dor de cotovelo

Eu - começa a loucura. Invento estimação. Cão com vôo. Mania de carinho, mania de cuidado. Comércio de colares. Insônias cóleras. Dio, come ti amo! Eu - começa a história. Invento espaço; tempo invento. Giro em círculos, finjo-me morto. Espelho insurreto. É preciso vencer. Guerra do objeto. Parasita armada. Sob a pele, sob a célula. Eu - começa incrédula. Cão e ninho. Cão e filho. Baixo cúme: a prole-suga do ciúme.

7 de março de 2009

Clube da Esquina nº. 2

Acordou o despertador, eu já havia despertado. Desejei-te em lembrança e perdi teu rosto. Drummond falou d'essas coisas' interditas às seis. Chorei, não pingou. Saudei senis amores que não se pensam mais. Procurei uma longa conversa telefônica. Quis condenar algo; nada ocorreu-me. Resmunguei estas linhas. Olhei a janela longamente. Volto a escrevê-las. Aí não faz mais sentido. Aí é tacanho e infantil. Lembro da amiga que chega em casa. Julgo vulgar meu estado. Almejo coisas simples e vejo justiça nelas. Nada irá mudar. Verei um círculo. Talvez a bola, que não chuto. Talvez a lua, que é uma convenção. Resumirei em juvenília esta história contida num livro cheio delas. Atrasarei para o trabalho. Aí foi sábado e não descansei.

5 de março de 2009

O amor em paz

O ocaso estendido em passos. Andar passado. Prenúncio de chuvas na antiga linha seca. E ofereceu-me o mundo. Tantos mais passos sob nuvem negra. E insistiu na oferta. Dê-me teu silêncio sólido e perene - respondi. Vi pedras e preciptei-me. Passou; água não veio. Nalgum outro deserto, o povo deu graças.

1 de março de 2009

Ana Luíza

Mel em multicores, multicopas. A bosssa, a barba rala. A princesinha, a pérola, a pala.  A via sacra em mosaico ao mar. Corpo de malas. Mates, remates.  - Contemplei a criação; era boa. Nada disse. Despedi-me, no sétimo dia, em desalento e diesel.

27 de fevereiro de 2009

Sobre todas as coisas

Sobre a cúpula dos canhões procurei-a nalgum azul. Aquela palavra. As demais usurpavam-se, pois a guerra é injusta. Um estrondo fez o silêncio ampliar-se em ecos. A pedra se preencheu do som jamais ombreado pelos cilindros a mirar o mar. Se ouvíssemos.

17 de fevereiro de 2009

Dream a little dream of me

Sonhos procuraram tua silhueta. Saltou souvenirs e poeira. Passou chansons d'amour, passou cansos, sestinas.  Pisou sigiloso em subterrâneo leito. Damsel in distress. O súbito anti-amém: assim não foi. 

16 de fevereiro de 2009

Lover man

Gastei uma hora para encontrar o mineiro, que disse: Quero ser amado por e em tua palavra / nem sei de outra maneira a não ser esta / de reconhecer o dom amoroso. Se não falo de amor, digo que estou apaixonado pela idéia do hálito da boca de uma palavra que faz girar a mó das águas de um não-março. Não entendam mal: se não existe em verdade, se não existe em mentira, existe no espaço entre duas unhas. Ponte avulsa. Vicário útero.

26 de dezembro de 2008

2. Esperança perdida

Promessas, qual nada. Amanhecer. Ninguém diz. Ouvidos da casa, mudos. Esperei que ligasse. Esperei que dissesse. Mesmo assim respondi: Eu só queria um, um, bom motivo para não desistir. Como se quisesse, eu também. Como se déssemos graça. Como algum troço que nem se lembra. Alguém. Traço. Qual nada! Ter de ligar o rádio. Música ordinária, ordinário mundo.

1. Love for Sale

São três: Love for Sale, da Billie e Illusions, da Dietrich. Nesta ordem, durante o banho. A certeza íntima de que ninguém saberia entender. Porque estou acima de qualquer história. Porque estou acima da autocrítica. Porque estou acima destas palavras ordenadas. Sim, a certeza subterrânea de que eu sou aquele que entende; não aquele que diz: isto é jazz. A terceira foi o silêncio.

21 de agosto de 2008

Jeito de corpo

Vou perguntar novamente. Diga Sim. Contar que na noite passada sonhei um antigo corpo. E nesta, me alongo em insônia. Acordado, no caderno há um nome que não identifico sob o risco. Meu presente arrisco em um dado branco. O jogo não é justo, afinal. As minhas mãos diminuídas. Mas falei de filhos e toalhas de mesa, pois sou do tipo. Da lua, que anda cheia e tão clara no quintal. (Ou da luz acesa?) Vendo as sombras esticadas pelo varal sem roupa, escutei um standard, não sei se Porter ou Hart. Não pude acompanhar.

19 de agosto de 2008

Smile

Não foram os romances que leste e que deles pronuncio os personagens num francês mais ou menos acertado. Não foste tu. Nem eu. Foi um sofá de possibilidades. De reter um perfume em meu ombro. De observar limites. De Piaf. De sorrir. Estas palavras não cabem no beijo. Tampouco seriam as palavras. Misteriosa lótus crescida em tua palma esquerda. Dela nasceu um silêncio com dentes alvos. Assim o divido.

17 de agosto de 2008

De volta ao começo

No centro king-size de minha cama, ali redescobri um nome real. Recuperei-o. O começo haverá de ser um desconhecido lugar. Falo a partir das domésticas furnas, onde palavras são ecos. Faltava-me o nome. O quarto e o casal de Bali comprado numa feirinha qualquer. O quarto e seus livros. O quarto e a luz de um abajur. O quarto e um jazz. Sílaba e nota. Começa um nome. E os lábios pintam-se de confiança. Abertos. De janelas que se olham e não mais enxergam a rua. Teu aposento em meu corpo ainda existe, arrendado. Um coração bric-a-brac guarda nomes. O teu pode ser João; o meu eu hei de confessá-lo.

23 de junho de 2008

Eclipse de luna

Colecionam amores. Reclamam o espetáculo enquanto esqueço peripécias. Desconstruo. Ninguém quer ouvir o que não falo. Mas escutarei com rosto atento a todos e farei perguntas para que prossigam - o necessário espectador. Assim posso contar azulejos. Pintar guerras em cobalto, amores em ciano e a lua em indigo. Uma gota de sangue, mínima, fê-la púrpura. De um antigo tom de conchas. Réquiem polifônico: tuba e ingemisco. Fiz um menino mirando o céu: sei que demora a adormecer. Kyrie eleison.

29 de maio de 2008

Para ver as meninas

Lugares para se viver - e vivo: num samba do Paulinho, num soneto de Verlaine, numa sonata de Debussy, nas noites de piscina, na disciplina de dormir e despertar, no sein und zeit, no cão em colo conhecido, no sorriso gratuito, no sofá sem luz, no meu silêncio, no silêncio.

8 de maio de 2008

Janelas abertas

Sim, eu poderia ignorar as brasas de junhos, para que eu continue uma bandeirola na manhã seguinte. Recolher os balões e evitar o esqueleto consumido em lume. Ou ainda fazer dos foguetes acalanto e despertar alguns anos adiante perguntando ao tempo por ti. Mas esta janela aberta, frente àquela estação de trem, ensinou-me muito cedo as ciências retilíneas: o sereno sobre a fogueira e as miudezas coletivas dentro da pólvora no formigueiro: o mau tempo e o susto de subterrâneas costuras da rotina - será ainda São João? Se já faz Sol e meu coração o assume, me preocupa o azul, ao fundo, que o sustenta.

27 de abril de 2008

Ruas que sonhei

Começa, mas em arranjo de poucos... acordes: é sono. De sobrancelha baixa - é o peso da noite. A noite também é um arranjo. Silencioso. Um pacto: que nos fizéssemos dia, lua nova. Esqueça o cigarro e a bebida. Esqueça um livro novo e vitrines. Esqueça também aquela sombra. Para que o sorriso, por fim, dependa só dos dentes. É sono. De exceção. Chegar em casa e haver um cão, não haver aquela praia. Deitado, o horizonte de minha janela se aprofunda e cai. Há um mundo que eu queria às avessas. Desconcerto e... acordes: sim, é sono. As coisas seguem como uma segunda-feira. Revés de alvorada. Via cansada. Passa. Se caído, tido por morto: está vivo, é sono e sono é também derrota. Pois que já estava tarde numa além-clara manhã.

22 de abril de 2008

Imagina

Fragilidade: coisa que evitei pelas duras costas que inventei. Coração-palafita e fracasso: estou na cheia, corpo estranho solto entre sargaços... e a lágrima que parece descer de montanhas já riscou seus meandros por entre as rochas: chega-me com facilidade - eu que sempre me fiz alto, é preciso que se diga, eu que tentei ser pedra e só me fiz vidro nestas páginas desertas, é preciso que se diga! Estou perdendo a prática: fôlego curto, perna fraca. Esperei. A voz de quem? O verso - aquele - que te mandei. Esta escrita truncada, monótona: porque o mar não existe. Mas sei que a próxima onda alcança o castelo. Você faz outro, menino.

21 de abril de 2008

Choro Bandido

Confesso a falta de luz. Confesso o luto por que ainda era fruto e não se fez semente. Confesso o improduto presente. Confesso minha ignorância mais fútil - verso confesso. Que não foi acidente a última desfeita, mas o foi o soneto, o foi a receita. Confesso a suspeita: o olho a espreita, a mão direita, a punheta confesso. Confesso a decência a prudência a mesura. Confesso o café da mesa posta, o silêncio em compotas, o assento da avó morta. Confesso minhas costas, a fofoca. Confesso a glosa, o gloss, a intriga cinta-liga. Confesso a palavra mendiga, bendita que me escapa. Confesso os livros que não li e imito e as piadas de que ri, sem as ter entendido. Confesso render-me à moda e à vitrola. Mundo a fora e o mudo quarto crescente em mim confesso. Confesso claire de lune o câncer e a astrologia. Confesso a confissão que me refugia em óbvias rimas. Confesso de mentira - confesso.

1 de abril de 2008

Amando sobre os jornais

Ausento-me para colecionar recortes das colunas. Notícias vencidas. Porque já é constrangedor responder ao 'e as novidades?' quando só quero ouvir um velho samba-canção. Daqueles que assobiam; eu conheço os versos. Aceno. É para sorrir. Imaginei para mim uma espécie de cardápio: com fotos, preferências, disponibilidades e riscos. Vejam vocês, falhou. Converso com precários quadros, pelo caminho vou deixando este rastro brilhante de passo lento. Talvez me encontrem em pequena nota, desfeito no sal do mar. O suco de laranja sem açúcar faz sentido - só não entendo esta mesa enorme, os arredores e eu. Senhores em solene assembléia, na qual represento os que resolveram, ainda muito jovens e sem consciência disso, ler jornais e ter sorriso fácil como medidas compensatórias. Falo timidamente, no vernáculo, confiando em tradutores. Piadas babélicas não têm mais graça. Traições, mal-entendidos e esdrúxulas combinações: um bom dia para colecionadores. Estar sozinho é ler o jornal e não saber se era amor ou certa notícia que revelava: o muco das lesmas é cicatrizante e despoluidor. Lembrei-me de praias desertas.

25 de março de 2008

Op. 99

E o dia fora de rostos pertinentes a sua carência. Mas ainda havia: do fundo daquele ônibus, o outro vestia um terno, trazia com dificuldade o instrumento. A coincidência do ponto em que desceram fez com que ele procurasse em si alguma beleza para reclamar um acorde. Pediu: te pagaria por uma peça qualquer. Agora. Pra mim. Ele aceitou sem dizer palavra. Aberta a capa, era liberdade. Começou. Teus olhos são luminosos. Não respondeu - ainda não. Dedilhou, não porque pedia a partitura - assim o fez por disponibilidade. Também por disponibilidade, ao baixar o arco, respondeu: conserve a fluência de teu sorriso. Era uma rua de bairro, na calçada. Era Brahms, em adagio affetuoso. Já no quarto, vestido o fraque de realidade, recebeu o bom Slava.

13 de março de 2008

Chuá Chuá

Tudo tem seu tempo, filho. Eu lembro. Do choro nos abraços quando era aniversário, natal ou qualquer outra data sem a menor importância. De que valem datas? Hoje sou eu, Porque estou sozinho e não respeito o tempo: danço no fim da festa; recolho meus carrinhos em meio a brincadeira. Escrevi leis quando era preciso paciência para certos vícios. Da casa, por exemplo. De Inezita Barroso, inclusive. Saudade, que ainda mora. De pouquinho em pouquinho, todo dia um gole. Do bom-dia. Do boa-noite. Eu lembro. Avanço e retrocedo meio a esmo, feito VHS. Difícil encontrar aquela cena. Eu lembro. Pelo hábito, roga por mim. Pra acertar meu relógio ao compasso do pulso. O rosário está guardado. Perdoa não rezar. Mas aceita essa modinha: metade luz fria, metade lampião de gás. A senhora faz falta, Dona Inês, muita falta.

4 de março de 2008

Resposta ao tempo

Todos os dias, das noites herdada manhã, eu não sei que faço do tempo. Sou velha senhora temporã. E há uma janela frente a uma mecânica, a um grande hotel, ao oceano. O tempo não se conserta. Piso descalço o tapete deste quarto, das catedrais, dos mangues primordiais, onde a vida é repouso e movimento. Tempo, tempo, tempo. Não sei de pecados, não sei de infernos. Sei de tédios. É tempo de romãs, é tempo de maçãs. Salutares remédios. Aos irremidos. Quem nos salva, amiga? Quem olha por nós? As contas e os nós. A novena e o mês. O terceiro dia e o quinto útil. Calvário e alento. Tempo, tempo, tempo. Se levanto minha voz para saudar uma praia mentirosa e deuses d'água ou se te faz miúda orgulhosa nos labirintos de cartas e quartos é porque o tempo nos rói a geografia. E transpostos janeiros rios, morre-se em maio, antes de belo horizonte. Nunca há testemunhas, o mineiro me disse. Mortas. Tantas vezes diante do crime. Traçado de giz: alfa ômega, morte amarelinha, céu inferno. Bota o agasalho, moleque, vestem teu terno. Sobra-nos um bolero do Aldir, amiga. Estado de exceção. E nossos pés tão no chão, se evitarmos falar, encontram algum mar. Atraca, atraca.

(sobre texto de Thais Monteiro)

17 de fevereiro de 2008

Inútil Paisagem

E chover nos causa tantos transtornos, amor. Já esquecemos a antiga reverência, o milagre de existirmos em precipitação. Façamos da chuva cheia, do vento vaga, das gotas grãos. E minha mão que, por estranhos processos, ainda conserva certo aroma teu. Aplaudo a Senhora. O asfalto liquefeito no curso cadenciado de minhas palmas. No direito a tarde, no esquerdo madrugada. Meus braços em riste. Movimento as marés: reconstruo a minha casa neste meio-fio. Ela guarda os segredos, e me atende.

9 de fevereiro de 2008

Você não sabe amar

Ai que preguiça, amor... De te ouvir falar outra vez de grandes planos para o futuro, amores e viagens sem destino. De teus questionamentos miúdos sobre vida e metafísicas. De tuas artes poéticas. Amor, e se ficássemos quietinhos? Afastemos este espelho e seus barroquismos. Porque não iremos ganhar as estradas. Nossas páginas guardam o único segredo, aquele que responderia, afinal, o porquê delas existirem. Fiquemos com o pó. Porque nossas orgias e pecadinhos servem mais para contar aos outros e a nós e menos a algum propósito de evolução espiritual. Ou corpórea, se preferir - o objeto de culto não altera os rituais. E então te apaixonas pelo teu próprio texto, quando o texto tem tanto sangue quanto aquele pé de arruda. Este mundo, amor, não se presta a isto. Aqui se exercita outra carne. Deixemos tua megalomania existencial para embalar teu sono ou para mascarar-te a rotina dos dias. Antes de ires, amor, reclame novamente minha sempre condescendente opinião e não te esqueça de meu beijo. Vá seguro de ti, enquanto eu arremesso ao cesto uma nova bolinha de papel e tento assim um último acerto.