26 de dezembro de 2008

2. Esperança perdida

Promessas, qual nada. Amanhecer. Ninguém diz. Ouvidos da casa, mudos. Esperei que ligasse. Esperei que dissesse. Mesmo assim respondi: Eu só queria um, um, bom motivo para não desistir. Como se quisesse, eu também. Como se déssemos graça. Como algum troço que nem se lembra. Alguém. Traço. Qual nada! Ter de ligar o rádio. Música ordinária, ordinário mundo.

1. Love for Sale

São três: Love for Sale, da Billie e Illusions, da Dietrich. Nesta ordem, durante o banho. A certeza íntima de que ninguém saberia entender. Porque estou acima de qualquer história. Porque estou acima da autocrítica. Porque estou acima destas palavras ordenadas. Sim, a certeza subterrânea de que eu sou aquele que entende; não aquele que diz: isto é jazz. A terceira foi o silêncio.

21 de agosto de 2008

Jeito de corpo

Vou perguntar novamente. Diga Sim. Contar que na noite passada sonhei um antigo corpo. E nesta, me alongo em insônia. Acordado, no caderno há um nome que não identifico sob o risco. Meu presente arrisco em um dado branco. O jogo não é justo, afinal. As minhas mãos diminuídas. Mas falei de filhos e toalhas de mesa, pois sou do tipo. Da lua, que anda cheia e tão clara no quintal. (Ou da luz acesa?) Vendo as sombras esticadas pelo varal sem roupa, escutei um standard, não sei se Porter ou Hart. Não pude acompanhar.

19 de agosto de 2008

Smile

Não foram os romances que leste e que deles pronuncio os personagens num francês mais ou menos acertado. Não foste tu. Nem eu. Foi um sofá de possibilidades. De reter um perfume em meu ombro. De observar limites. De Piaf. De sorrir. Estas palavras não cabem no beijo. Tampouco seriam as palavras. Misteriosa lótus crescida em tua palma esquerda. Dela nasceu um silêncio com dentes alvos. Assim o divido.

17 de agosto de 2008

De volta ao começo

No centro king-size de minha cama, ali redescobri um nome real. Recuperei-o. O começo haverá de ser um desconhecido lugar. Falo a partir das domésticas furnas, onde palavras são ecos. Faltava-me o nome. O quarto e o casal de Bali comprado numa feirinha qualquer. O quarto e seus livros. O quarto e a luz de um abajur. O quarto e um jazz. Sílaba e nota. Começa um nome. E os lábios pintam-se de confiança. Abertos. De janelas que se olham e não mais enxergam a rua. Teu aposento em meu corpo ainda existe, arrendado. Um coração bric-a-brac guarda nomes. O teu pode ser João; o meu eu hei de confessá-lo.

23 de junho de 2008

Eclipse de luna

Colecionam amores. Reclamam o espetáculo enquanto esqueço peripécias. Desconstruo. Ninguém quer ouvir o que não falo. Mas escutarei com rosto atento a todos e farei perguntas para que prossigam - o necessário espectador. Assim posso contar azulejos. Pintar guerras em cobalto, amores em ciano e a lua em indigo. Uma gota de sangue, mínima, fê-la púrpura. De um antigo tom de conchas. Réquiem polifônico: tuba e ingemisco. Fiz um menino mirando o céu: sei que demora a adormecer. Kyrie eleison.

29 de maio de 2008

Para ver as meninas

Lugares para se viver - e vivo: num samba do Paulinho, num soneto de Verlaine, numa sonata de Debussy, nas noites de piscina, na disciplina de dormir e despertar, no sein und zeit, no cão em colo conhecido, no sorriso gratuito, no sofá sem luz, no meu silêncio, no silêncio.

8 de maio de 2008

Janelas abertas

Sim, eu poderia ignorar as brasas de junhos, para que eu continue uma bandeirola na manhã seguinte. Recolher os balões e evitar o esqueleto consumido em lume. Ou ainda fazer dos foguetes acalanto e despertar alguns anos adiante perguntando ao tempo por ti. Mas esta janela aberta, frente àquela estação de trem, ensinou-me muito cedo as ciências retilíneas: o sereno sobre a fogueira e as miudezas coletivas dentro da pólvora no formigueiro: o mau tempo e o susto de subterrâneas costuras da rotina - será ainda São João? Se já faz Sol e meu coração o assume, me preocupa o azul, ao fundo, que o sustenta.

27 de abril de 2008

Ruas que sonhei

Começa, mas em arranjo de poucos... acordes: é sono. De sobrancelha baixa - é o peso da noite. A noite também é um arranjo. Silencioso. Um pacto: que nos fizéssemos dia, lua nova. Esqueça o cigarro e a bebida. Esqueça um livro novo e vitrines. Esqueça também aquela sombra. Para que o sorriso, por fim, dependa só dos dentes. É sono. De exceção. Chegar em casa e haver um cão, não haver aquela praia. Deitado, o horizonte de minha janela se aprofunda e cai. Há um mundo que eu queria às avessas. Desconcerto e... acordes: sim, é sono. As coisas seguem como uma segunda-feira. Revés de alvorada. Via cansada. Passa. Se caído, tido por morto: está vivo, é sono e sono é também derrota. Pois que já estava tarde numa além-clara manhã.

22 de abril de 2008

Imagina

Fragilidade: coisa que evitei pelas duras costas que inventei. Coração-palafita e fracasso: estou na cheia, corpo estranho solto entre sargaços... e a lágrima que parece descer de montanhas já riscou seus meandros por entre as rochas: chega-me com facilidade - eu que sempre me fiz alto, é preciso que se diga, eu que tentei ser pedra e só me fiz vidro nestas páginas desertas, é preciso que se diga! Estou perdendo a prática: fôlego curto, perna fraca. Esperei. A voz de quem? O verso - aquele - que te mandei. Esta escrita truncada, monótona: porque o mar não existe. Mas sei que a próxima onda alcança o castelo. Você faz outro, menino.

21 de abril de 2008

Choro Bandido

Confesso a falta de luz. Confesso o luto por que ainda era fruto e não se fez semente. Confesso o improduto presente. Confesso minha ignorância mais fútil - verso confesso. Que não foi acidente a última desfeita, mas o foi o soneto, o foi a receita. Confesso a suspeita: o olho a espreita, a mão direita, a punheta confesso. Confesso a decência a prudência a mesura. Confesso o café da mesa posta, o silêncio em compotas, o assento da avó morta. Confesso minhas costas, a fofoca. Confesso a glosa, o gloss, a intriga cinta-liga. Confesso a palavra mendiga, bendita que me escapa. Confesso os livros que não li e imito e as piadas de que ri, sem as ter entendido. Confesso render-me à moda e à vitrola. Mundo a fora e o mudo quarto crescente em mim confesso. Confesso claire de lune o câncer e a astrologia. Confesso a confissão que me refugia em óbvias rimas. Confesso de mentira - confesso.

1 de abril de 2008

Amando sobre os jornais

Ausento-me para colecionar recortes das colunas. Notícias vencidas. Porque já é constrangedor responder ao 'e as novidades?' quando só quero ouvir um velho samba-canção. Daqueles que assobiam; eu conheço os versos. Aceno. É para sorrir. Imaginei para mim uma espécie de cardápio: com fotos, preferências, disponibilidades e riscos. Vejam vocês, falhou. Converso com precários quadros, pelo caminho vou deixando este rastro brilhante de passo lento. Talvez me encontrem em pequena nota, desfeito no sal do mar. O suco de laranja sem açúcar faz sentido - só não entendo esta mesa enorme, os arredores e eu. Senhores em solene assembléia, na qual represento os que resolveram, ainda muito jovens e sem consciência disso, ler jornais e ter sorriso fácil como medidas compensatórias. Falo timidamente, no vernáculo, confiando em tradutores. Piadas babélicas não têm mais graça. Traições, mal-entendidos e esdrúxulas combinações: um bom dia para colecionadores. Estar sozinho é ler o jornal e não saber se era amor ou certa notícia que revelava: o muco das lesmas é cicatrizante e despoluidor. Lembrei-me de praias desertas.

25 de março de 2008

Op. 99

E o dia fora de rostos pertinentes a sua carência. Mas ainda havia: do fundo daquele ônibus, o outro vestia um terno, trazia com dificuldade o instrumento. A coincidência do ponto em que desceram fez com que ele procurasse em si alguma beleza para reclamar um acorde. Pediu: te pagaria por uma peça qualquer. Agora. Pra mim. Ele aceitou sem dizer palavra. Aberta a capa, era liberdade. Começou. Teus olhos são luminosos. Não respondeu - ainda não. Dedilhou, não porque pedia a partitura - assim o fez por disponibilidade. Também por disponibilidade, ao baixar o arco, respondeu: conserve a fluência de teu sorriso. Era uma rua de bairro, na calçada. Era Brahms, em adagio affetuoso. Já no quarto, vestido o fraque de realidade, recebeu o bom Slava.

13 de março de 2008

Chuá Chuá

Tudo tem seu tempo, filho. Eu lembro. Do choro nos abraços quando era aniversário, natal ou qualquer outra data sem a menor importância. De que valem datas? Hoje sou eu, Porque estou sozinho e não respeito o tempo: danço no fim da festa; recolho meus carrinhos em meio a brincadeira. Escrevi leis quando era preciso paciência para certos vícios. Da casa, por exemplo. De Inezita Barroso, inclusive. Saudade, que ainda mora. De pouquinho em pouquinho, todo dia um gole. Do bom-dia. Do boa-noite. Eu lembro. Avanço e retrocedo meio a esmo, feito VHS. Difícil encontrar aquela cena. Eu lembro. Pelo hábito, roga por mim. Pra acertar meu relógio ao compasso do pulso. O rosário está guardado. Perdoa não rezar. Mas aceita essa modinha: metade luz fria, metade lampião de gás. A senhora faz falta, Dona Inês, muita falta.

4 de março de 2008

Resposta ao tempo

Todos os dias, das noites herdada manhã, eu não sei que faço do tempo. Sou velha senhora temporã. E há uma janela frente a uma mecânica, a um grande hotel, ao oceano. O tempo não se conserta. Piso descalço o tapete deste quarto, das catedrais, dos mangues primordiais, onde a vida é repouso e movimento. Tempo, tempo, tempo. Não sei de pecados, não sei de infernos. Sei de tédios. É tempo de romãs, é tempo de maçãs. Salutares remédios. Aos irremidos. Quem nos salva, amiga? Quem olha por nós? As contas e os nós. A novena e o mês. O terceiro dia e o quinto útil. Calvário e alento. Tempo, tempo, tempo. Se levanto minha voz para saudar uma praia mentirosa e deuses d'água ou se te faz miúda orgulhosa nos labirintos de cartas e quartos é porque o tempo nos rói a geografia. E transpostos janeiros rios, morre-se em maio, antes de belo horizonte. Nunca há testemunhas, o mineiro me disse. Mortas. Tantas vezes diante do crime. Traçado de giz: alfa ômega, morte amarelinha, céu inferno. Bota o agasalho, moleque, vestem teu terno. Sobra-nos um bolero do Aldir, amiga. Estado de exceção. E nossos pés tão no chão, se evitarmos falar, encontram algum mar. Atraca, atraca.

(sobre texto de Thais Monteiro)

17 de fevereiro de 2008

Inútil Paisagem

E chover nos causa tantos transtornos, amor. Já esquecemos a antiga reverência, o milagre de existirmos em precipitação. Façamos da chuva cheia, do vento vaga, das gotas grãos. E minha mão que, por estranhos processos, ainda conserva certo aroma teu. Aplaudo a Senhora. O asfalto liquefeito no curso cadenciado de minhas palmas. No direito a tarde, no esquerdo madrugada. Meus braços em riste. Movimento as marés: reconstruo a minha casa neste meio-fio. Ela guarda os segredos, e me atende.

9 de fevereiro de 2008

Você não sabe amar

Ai que preguiça, amor... De te ouvir falar outra vez de grandes planos para o futuro, amores e viagens sem destino. De teus questionamentos miúdos sobre vida e metafísicas. De tuas artes poéticas. Amor, e se ficássemos quietinhos? Afastemos este espelho e seus barroquismos. Porque não iremos ganhar as estradas. Nossas páginas guardam o único segredo, aquele que responderia, afinal, o porquê delas existirem. Fiquemos com o pó. Porque nossas orgias e pecadinhos servem mais para contar aos outros e a nós e menos a algum propósito de evolução espiritual. Ou corpórea, se preferir - o objeto de culto não altera os rituais. E então te apaixonas pelo teu próprio texto, quando o texto tem tanto sangue quanto aquele pé de arruda. Este mundo, amor, não se presta a isto. Aqui se exercita outra carne. Deixemos tua megalomania existencial para embalar teu sono ou para mascarar-te a rotina dos dias. Antes de ires, amor, reclame novamente minha sempre condescendente opinião e não te esqueça de meu beijo. Vá seguro de ti, enquanto eu arremesso ao cesto uma nova bolinha de papel e tento assim um último acerto.