Minto se digo doer a saudade, que se tornou, desconfio, coisa fina e contínua, como zumbido perceptível aos ouvidos apenas em grande silêncio. Aí nota-se que o barulho não vem de fora; está ali em nós, dentro de nós, o tempo todo em nós. Talvez saudade seja palavra que repito impreciso quando digo de tua mão pousada em minha coxa enquanto almoçamos (e não sabem mãos e coxas da delicadeza que encenam quase mecanicamente). Talvez saudade seja palavra que impreciso repito quando digo de tua boca semi-aberta amassada contra o travesseiro que assisto antes de te despertar (e não sabem bocas e travesseiros dos indícios que ali encontro de pureza e verdade). Digo do muito suor de nossas manhãs: com ele alimento a elipse da lua, a elipse que agora pode girar na mais tediosa prosa dos dias. Possivelmente não é saudade, possivelmente não é saudade as sutis modulações do apito que, incessante, pede para não fazermos senão repetirmo-nos: boa noite amor boa noite amor.
15 de setembro de 2010
18 de agosto de 2010
Esotérico
Tenho a impressão que nunca compreendi cada vinco do tempo compartilhado, cada veia saliente das pernas. Observar com alguma verdade um corpo e ter calma. Estar calmo. E seguro. Poucos foram aqueles a quem entreguei meu sono - o de quem descansa. Penso que por muito poucos velei a procura dele. E talvez nenhum tenha me dado, enquanto procurei. Tempo e permanência, pedi. Certamente um dia não mais admitirei chamar amor a estas músicas que terminam no volume descendente, pouco a pouco, até o silêncio. Espero-o pelas madrugadas. Penso que invariavelmente esperarei. Porque assim aprendi com minha mãe. Porque assim amam as mulheres da casa. E me habituei a ter sempre um verso pronto, pendurado à maçaneta, para que me acordasse quando girasse desajeitada já no avançado da noite. Ainda sou o menino que antes dizia eu-te-amo com pouco cuidado e muita sinceridade; hoje, talvez, com a diferença do inverso. Mas ainda ele, talvez destino dos que escolhem errar.
9 de julho de 2010
At long last love
A arte de viver em sismografias de casa sólida. Não eram sirenes. Suponho que havia luz quando fechei a janela do quarto. Não que o inverno estivesse rigoroso: sempre pode esfriar durante a madrugada. Acordo, não saio da cama e da Anatólia até meu travesseiro somente gravei o dissonante traço de cenhos. A constatação não escapa às agulhas: havemos de dormir com algum déficit de zinco ou potássio diariamente. Mas hoje se me escapar uma rima por entre serpentes da noite, te juro, eu rasgo Saint Andreas como quem rasga estes versos.
11 de junho de 2010
Por toda minha vida
Achei amor por entre velhos cobertores estocados em longos verões. Amar como quem ganha certezas. Amar como quem as perde. Amar como quem almoça chiclete. Amar como quem coleciona defeitos. Amar como quem nunca violou botões de emergência e agora os procura por segurança. Amar como quem volta a rezar. Amar como quem percebe o deslize do mágico e está satisfeito com o circo. Amar como quem assiste galhos de árvore crescer numa tarde. Amar como quem desconfia que três ou quatro pelos nascidos no braço são sementes do outro vaso. Amar como quem reconhece companhia em dedos tingidos na groselha das pipocas. Amar como quem, no vapor desta água, bebe todos os chás futuros. Amar como quem reescreve um povo para justificar o estrangeiro. Amar como quem acorda e decide voltar para cama. Amar como quem tem cama. Amar como quem não dorme. Amar como quem esquece a vontade de amar. Amar como quem ignora a própria mentira. Amar, sim, como quem volta a rezar. Amar como se fosse possível. Amar como quem diz por toda vida e isto quer dizer.
30 de março de 2010
Falando de amor
Quando imaginei que o proveito último de um amor era um verso, enrubesceu o beijo num semáforo perdido. A senhora que laborava em longas teias de segunda realidade desfiou os olhos para o sol. The curse is come upon me, she cried. Agora, serão teus apenas e todos os meus rascunhos. E pela fenda de um espelho partido, cruzamos antes que os carros tornassem a andar. Atravessemos. E do silêncio apressado dos que procuram a outra margem, eu tiro um verso de metro raro.
26 de março de 2010
Estate
E olhei ao verde relógio por entre os cílios que se abriam, pois que meu corpo, sem que eu desse por isto, atendia ao dele, desperto: duas silhuetas no teatro se confundiam no traçado que o catálogo chinês evitou nomear. E confidenciei: sei que está acordado - e à formula deu-se a contra-senha de um beijo. Toma-me a rosa-dos-ventos. Descobre as quatro setas que apontam pro este, pra arte dos nascentes, pra arte de vencer madrugadas. Era ele, este, a quem eu oferecia a verdade das manhãs de estate no silencioso diálogo de nosso conforto.
21 de março de 2010
There's a small hotel
Escondi as mãos e o signo de rascunhos. Examinei nas digitais da memória mínimos espaços do teu corpo que preencho com flores e o sumo das frutas. Das madrugadas cresce o tangerina de portas damasco; do pó cansado das ruas, o jasmineiro que não se dá a ver. Encontrar a delicadeza dos pulsos era hábito entre os noivos de tribos inventadas: meu polegar e indicador fechados em círculo na ponta de teu dedo médio. Provisório coração. Batida fina - é vivo. Com a rendição do gesto: "olha como tenho as palmas todas riscadas", ofereci o solo de duas luas para tua livre cartografia: pátrias e estados menores, estandartes menores, cidades e hotéis menores, quartos, leitos, homens menores - o pulso.
28 de fevereiro de 2010
Préludes, La cathédrale engloutie
Cobertores e lençóis tem o cheiro puro sangue das minhas noites. Íris da praia de um sorriso, abertos dentes de madrugada e seco pelo ocaso, pelo acaso seco: ecos de catedral pré-fabricada, falsos profetas e hosanas lâminas. Numa esquina daquele banho, a estranha arquitetura de poeira e três ou quatro fios do meu cabelo. A percussão das gotas era também disritmia de um monocórdio coração.
11 de fevereiro de 2010
Sábado em Copacabana
Na noite entre ondas de rapazes branco e preto. Perdido em infames jogos babélicos, bibliotecas imaginárias cujos cantos segredam jardins sob pretexto de saúde. Um desperado. Um plano de vingança sempre remoçado. São muitas mãos que exercitam meu corpo ao longe para que se garanta a saliva da linha. Vinde a mim. Desconfiam do sotaque. Sou daqui. O que não atinam é com a outra mentira, talvez por isso o estranhem. È strano, è strano. E antes de fechar a porta, arriscam: são violetas, camélias, margaridas? Não entendem o sorriso, mas suspeitam que seja adeus. Vão.
28 de janeiro de 2010
Folhetim II
Os homens tornam-se seu sintoma: a cicatriz o grito o corte de cabelo a porra. Alguns são nada, sequer data em calendário vencido. Acumulados anônimos em submerso movimento manam. Ocorrem-me do chão - como uma cárie, um poro obstruído. De nada vale espremer até verter sangue. Pensou, então, poder falar de outros pomares.
24 de janeiro de 2010
Folhetim
Meu colar tem muitas contas: olhos bocas homens mortos carnes cortes. Joie de cofre. Dança o deus na corte - Melchior trouxe lençóis; Baltazar, vinho; Gaspar, sorrisos. O menino adulto herdará o mundo com seus preços, leis e servirá muitos senhores, outros tantos reis.
17 de janeiro de 2010
Sem fantasia
Cessaram as lutas, meu homem. Levantar ataque, levantar defesa soa credo incômodo. Serão outras as lições do meu soldo. Quem canta em tempo de paz tem de clamar licença, tem de forjar justificativas, tem de sofrer o escárnio dos amputados na sangria. Quero que te atente, que te apresente, que inscreva em meu manto as tuas gestas. Entrega-me teu arco, flechas. Corpo de batalha, terra de ninguém: talvez assim camuflemos despedida ou talvez perpetuemos guerra involuntariamente. Mantenha a posição, ao meu sinal...
13 de janeiro de 2010
Morro Dois Irmãos III
Então eu te disse: não quero mais, quero sempre. Respondeste: o que é mais que sempre? Coordenadas de nossa fantasia. Geografia estraniera. E digo Abissínia, Mianmar. Invento capitais de impérios e tropicais whisky mares. Invento um novo eixo, meridianos em palitos. O mundo, amor, começa aqui, nos litorais da minha retina, nas fronteiras, palmo a palmo, desta mesa, palmo a palmo, do que éramos nós. O dedo que procurou deus apontou a pedra e o nome que, por justo, confidenciamos hão as décadas de revisar.
11 de janeiro de 2010
Morro Dois Irmãos II
Se me entregas teu corpo, entrega-me algum silêncio, alguma vontade frouxa de não mais querer, algum cheiro de nada que carrego para cama e percebo no sonho que era do mar ou de ti no mar ou de qualquer variante que um sorriso palermo não há de resgatar pela manhã, entrega-me uma manhã, não uma qualquer, mas aquela que não sabe dos teus olhos de outono e ainda faz alvorada. Assim me despojo desta pele abrasada. Menos: desenho teogonias e faço de ti minha pétrea companhia, ancestral, no agora, no nosso tempo, no tempo em que o violeta e duas sombras no ocaso não exigem uma rapsódia.
7 de janeiro de 2010
Morro Dois Irmãos
Não te ocupe do corpo que arde. Não, amor. Não te ocupe dos meus dedos cortados. Não te ocupe do que é meu. Pois sentei-me: copo à esquerda e o mar na palma que escreve. E vi o que procuram meus olhos e sorri. Não quero menos e sorri. Do que espero e gosto e sorri. Nas curvas nos volumes n'água. Quase nua superfície, sombra maciça: titânicas evidências de outros arranjos de fogo e seus assentamentos. Não desejei aquele, mas toda a paisagem. Menos: era gente vulgar que dormia à volta ou os que não viram o meu sinal por detrás do vidro e do malte.
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