25 de março de 2008

Op. 99

E o dia fora de rostos pertinentes a sua carência. Mas ainda havia: do fundo daquele ônibus, o outro vestia um terno, trazia com dificuldade o instrumento. A coincidência do ponto em que desceram fez com que ele procurasse em si alguma beleza para reclamar um acorde. Pediu: te pagaria por uma peça qualquer. Agora. Pra mim. Ele aceitou sem dizer palavra. Aberta a capa, era liberdade. Começou. Teus olhos são luminosos. Não respondeu - ainda não. Dedilhou, não porque pedia a partitura - assim o fez por disponibilidade. Também por disponibilidade, ao baixar o arco, respondeu: conserve a fluência de teu sorriso. Era uma rua de bairro, na calçada. Era Brahms, em adagio affetuoso. Já no quarto, vestido o fraque de realidade, recebeu o bom Slava.

13 de março de 2008

Chuá Chuá

Tudo tem seu tempo, filho. Eu lembro. Do choro nos abraços quando era aniversário, natal ou qualquer outra data sem a menor importância. De que valem datas? Hoje sou eu, Porque estou sozinho e não respeito o tempo: danço no fim da festa; recolho meus carrinhos em meio a brincadeira. Escrevi leis quando era preciso paciência para certos vícios. Da casa, por exemplo. De Inezita Barroso, inclusive. Saudade, que ainda mora. De pouquinho em pouquinho, todo dia um gole. Do bom-dia. Do boa-noite. Eu lembro. Avanço e retrocedo meio a esmo, feito VHS. Difícil encontrar aquela cena. Eu lembro. Pelo hábito, roga por mim. Pra acertar meu relógio ao compasso do pulso. O rosário está guardado. Perdoa não rezar. Mas aceita essa modinha: metade luz fria, metade lampião de gás. A senhora faz falta, Dona Inês, muita falta.

4 de março de 2008

Resposta ao tempo

Todos os dias, das noites herdada manhã, eu não sei que faço do tempo. Sou velha senhora temporã. E há uma janela frente a uma mecânica, a um grande hotel, ao oceano. O tempo não se conserta. Piso descalço o tapete deste quarto, das catedrais, dos mangues primordiais, onde a vida é repouso e movimento. Tempo, tempo, tempo. Não sei de pecados, não sei de infernos. Sei de tédios. É tempo de romãs, é tempo de maçãs. Salutares remédios. Aos irremidos. Quem nos salva, amiga? Quem olha por nós? As contas e os nós. A novena e o mês. O terceiro dia e o quinto útil. Calvário e alento. Tempo, tempo, tempo. Se levanto minha voz para saudar uma praia mentirosa e deuses d'água ou se te faz miúda orgulhosa nos labirintos de cartas e quartos é porque o tempo nos rói a geografia. E transpostos janeiros rios, morre-se em maio, antes de belo horizonte. Nunca há testemunhas, o mineiro me disse. Mortas. Tantas vezes diante do crime. Traçado de giz: alfa ômega, morte amarelinha, céu inferno. Bota o agasalho, moleque, vestem teu terno. Sobra-nos um bolero do Aldir, amiga. Estado de exceção. E nossos pés tão no chão, se evitarmos falar, encontram algum mar. Atraca, atraca.

(sobre texto de Thais Monteiro)